O Apagão na Península Ibérica
As autoridades explicarão exatamente o que esteve na origem do corte generalizado de eletricidade em Portugal e em Espanha. Mas o que aconteceu permite-nos repensar o sistema elétrico, com as renováveis na base, e agir para garantirmos cada vez maior resiliência.
Eventos como o que ocorreu esta segunda-feira, 28 de janeiro, são muito raros. O sistema elétrico é extremamente fiável, e o de Portugal está entre os melhores do mundo em termos de tempo sem abastecimento.
Sistema Elétrico Português
O sistema elétrico português é o conjunto de infraestruturas e organismos responsáveis pela produção, transporte, distribuição e comercialização de energia elétrica em Portugal. Está organizado em três pilares:
1. Produção de Energia: A energia elétrica em Portugal provém de diversas fontes, incluindo renováveis e não renováveis. Nas últimas décadas, o investimento em renováveis tem sido potenciado pela descida do preço destas tecnologias e pelo aumento do preço dos combustíveis fósseis. Em 2024, a energia renovável abasteceu 71% do consumo total de energia elétrica em Portugal.
2. Transporte e Distribuição de Energia: A Rede Nacional de Transporte (RNT) é gerida pela Redes Energéticas Nacionais (REN). A REN assegura o transporte da eletricidade em alta tensão desde os centros de produção até às redes de distribuição ou a grandes consumidores industriais. A energia é depois distribuída em média e baixa tensão até aos consumidores finais. A E-Redes é o principal operador da rede de distribuição.
3. Comercialização de Energia: No mercado liberalizado, vários comercializadores competem para fornecer eletricidade aos clientes, permitindo a escolha de tarifas e serviços.
O sistema é regulado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), que assegura a transparência, a concorrência e a proteção dos consumidores.
Integração com o Sistema Elétrico Espanhol
Portugal e Espanha partilham interligações elétricas, funcionando de forma coordenada. O mercado de energia é também ibérico, o Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL). Esta integração e interdependência dos sistemas traz várias vantagens:
- Maior segurança e estabilidade: Uma rede maior e mais interligada é tendencialmente mais estável do que cada uma das suas partes. A interligação e coordenação permitem que, em caso de problemas, ambos os países possam recorrer à estabilização oferecida por mais centrais e mais consumidores, aumentando a resiliência do sistema.
- Eficiência económica: A integração facilita o comércio de eletricidade, permitindo que a energia mais barata (seja portuguesa ou espanhola) possa ser usada em ambos os mercados, baixando os preços para os consumidores. Também facilita a integração de mais energia renovável que, com custos variáveis nulos, ajuda a baixar o preço de mercado e ao consumidor
- Apoio às energias renováveis: Como a produção renovável (eólica e solar) é variável, a rede conjunta ajuda a equilibrar melhor as flutuações.
- Acesso a um mercado maior: As empresas portuguesas podem operar num mercado mais amplo, incentivando o investimento e a competitividade.
- Cumprimento de metas ambientais europeias: Um sistema mais flexível e eficiente ajuda os países a cumprir os objetivos de redução de emissões de carbono e de promoção de energias limpas. De facto, um sistema muito interligado é essencial para os objetivos de penetração de renováveis, permitindo usar os recursos onde existam (por exemplo abastecer consumos em Espanha com o vento que possa existir em França e o sol em Portugal).
Então porque existiu o apagão?
As fontes oficiais explicarão o que aconteceu, tendo acesso a dados que nós, por enquanto, não temos. Qualquer informação que déssemos agora seria especulação. No entanto, é importante ter em consideração que o abastecimento de eletricidade é um sistema bastante complexo e que tem de manter determinados parâmetros de qualidade da energia elétrica para garantir o bom funcionamento de todos os equipamentos que a ele se encontram ligados. O parâmetro mais sensível e mais indicador da “saúde” do sistema é a frequência. Sempre que existe uma variação desta frequência esta tem de ser imediatamente compensada e, se isso não for possível, o sistema tem de ser desligado. Terá sido uma destas variações de frequência que levou ao desligar do sistema, falta saber a razão para isso não ter sido controlado, como acontece em todas as restantes circunstâncias.
Há aprendizagens e alterações que possamos fazer?
Certamente.
Independentemente das causas do apagão de ontem, sabemos que:
- Um sistema mais distribuído é mais resiliente: Embora a existência de produção distribuída não garanta, por si só, uma capacidade de recuperação mais rápida destes incidentes, se aliada à maior digitalização das redes e criação de requisitos de capacidade de arranque independente, pode ser instrumental.
- Uma rede com mais informação e capacidade de atuação é mais resiliente: A capacidade de reconhecer uma perturbação e atuar rapidamente e capilarmente é essencial para não a deixar propagar.
- Os sistemas residenciais podem oferecer alternativas temporárias: Desde que preparados para tal, os sistemas residenciais podem continuar a funcionar em caso de falha de energia da rede. Tal exige investimentos particulares que não estão ao alcance de todas as famílias, e dada a raridade de falhas de energia atualmente poderá não ser prioritário. No entanto, para quem tenha interesse em adquirir um sistema, é bom não esquecer esta vantagem não-económica no momento de análise comparativa de propostas.
A nossa dependência da eletricidade é cada vez maior. Seja para as casas ou mesmo para as bombas de gasolina conseguirem abastecer os clientes, há impactos significativos quando se perde o acesso à eletricidade. Por isso, há opções que devem ser tomadas ao nível dos investimentos nas redes, com mais digitalização e informação, com a entrada de baterias que forneçam serviços de estabilização (a chamada “inércia sintética”) e com a capacidade de arranque mais distribuída, para que, quando aconteça uma falha, seja mais rápida a sua reposição.
Como as Comunidades de Energia e o Autoconsumo podem ajudar numa situação de apagão?
O grande trunfo das Comunidades de Energia Renovável é pensar o sistema de forma descentralizada e equilibrando o sistema entre a produção e o consumo à escala local, com recurso também a sistemas de armazenamento coletivo. A produção descentralizada de energia renovável, as Comunidades de Energia Renovável e o Autoconsumo Coletivo podem ajudar a dar maior resiliência ao sistema. Mas para as comunidades de energia ajudarem efetivamente numa situação rara, como a que aconteceu na segunda-feira, precisamos de investimento na digitalização e atuação mais capilar das redes para as tornarmos mais resilientes.
Na Coopérnico continuaremos a trabalhar para simplificar o tema e procurar garantir uma participação cidadã nesta evolução.